segunda-feira, junho 01, 2015

ENTREGUE


 
 

No segundo encontro manifestou-se entre eles uma intimidade de duradouros anos. O apartamento em condições de guerra. Pilhas de pratos e panelas na pia, sinalizando abandono de semanas. Roupas sujas espalhadas pelo chão. Copos cheios de bitola de cigarro disputando espaço na mesa. Perguntou se ela se importava com a bagunça, antes que chegasse a sua casa. A visitante recomendou que deixasse como estava. Gostaria de conhecê-lo aprofundando-se em sua rotina.
Apesar de detestar careta, encarou a nicotina pelo prazer da companhia dele. Horas a fio conversavam sem bebericar um gole de água sequer. Retinha os segundos do rapaz, das idas dele à janela para um novo cigarro que lhe acalmasse o nervoso.
Pelos cantos do chão da casa, ferramentas. Chaves de fenda. Martelo. Alicate. Em cima da estante uma tesoura. O homem voltou-se para o espelho, passou a mão direita nos cabelos, reprovou o que constatou. Sabe cortar cabelo? Disparou. Não sou profissional. Você vai arriscar? E ele prontamente pegou a tesoura, puxou uma cadeira para perto dela e entregou-lhe o objeto cortante.
Poucas criaturas se despem da vaidade e se entregam confiantes no outro como esse homem o fez. Não se guardou para o barbeiro. Não subestimou o toque da mulher ali chegada. Olhos fechados, se colocou nas mãos femininas. A cena foi breve, mas o bastante para engrandecê-la com aquilo que certamente muitos ignorariam.

 


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