domingo, junho 07, 2015

DOCE INFÂNCIA

 
Dedicado à minha mãe, Maria Estela Maracajá *
 

 



Antigamente, ainda na época em que vivia nos engenhos, onde o mel era feito em tachos enormes, a menina entrava nos galpões procurando melado para adoçar o sabor de sua infância.

A moenda da cana, de tempos em tempos, tinha cheiro de bagaço moído, e a hora do corte dos doces em barra na fábrica abrilhantava seus olhos infantis atrevidos, que se enfiavam nos caixotes de cultivo de abelhas a procurar as rainhas, nunca sequer tendo sido ferroados.

O doce em barra oferecia aos vendedores ambulantes o produto para alegrar a ela e a criançada, e um dos ambulantes, seu Cícero, percorria a cidade num burrico, anunciando a guloseima aos seus apreciadores com o animal a azurrar alto, como que ajudando o seu dono a oferecer o artigo. 

O Homem do Urso surpreendia, trazendo pela coleira o mamífero de outras terras, colocando seu  bicho de estimação diante da menina, a comer torrões de açúcar bruto, o que tirava o personagem dos contos de fadas que ela conhecia. 

Nessa infância nordeste, interiorana, na fazenda de seu avô, na infância de botijas enterradas na praia dos rios, próximo ao serrote, nos tanques, a menina sabia que habitavam negros armados só vistos por pessoas mais atentas.  A criançada procurava as moedas carimbadas e douradas no sonho da sorte grande, mas o máximo que encontrava eram jaguatiricas trepadas nas árvores, silenciosas, a esperar a passagem do burburinho de longe.

No crepúsculo da fazenda, ali distantes, sem a presença da luz elétrica, a menina e a família ouviam o ciciar das cigarras e o balido das cabras com seus chocalhos no pescoço. Os candeeiros iluminavam o interior da casa que cheirava querosene queimado, e a janta era preparada para todos sentarem-se à mesa. Antes de dormir, a menina, os irmãos e os primos, ainda se acomodavam no calçadão da lateral da casa onde as janelas já haviam sido fechadas para os insetos não buscarem a luz e infestarem os quartos, unidos pela ausência de teto.

O banheiro fora da casa era o mote para causos de assombração, causa da cama urinada pelas crianças e dos pinicos cheios durante a manhã dos dias posteriores às noites de contação. E antes dos almoços, debulhando o feijão, novamente as crianças assentavam-se no calçadão para ouvir Histórias de Trancoso, de Tejus que se transformavam em príncipes encantados.

Nos dias em que a menina e os pequenos dormiam no sótão, deitados em redes, sentiam-se mais seguros dali de cima, longe do oratório que os assustavam, com seus santos de madeira de olhos vivos. Os lençóis, guardados em baús imensos de madeira nobre, cheiravam a sândalo e perfumavam seus sonhos inocentes e tranqüilos. 

Nestes tempos ninguém despertava tarde e dormia-se muito cedo. Meninos e meninas acordavam com o cocoricar do galo e corriam para o curral com copos de ágata e de alumínio para tomar o leite quente tirado na hora. Nessa rotina matinal a menina ajudava a produzir o queijo, colocando em tachos de madeira o leite já coalhado. Tirava o soro que dava para os porcos e fazia a manteiga de garrafa. O café era torrado e depois pisado no pilão. E o cuscuz era feito do milho ralado na hora. Tudo era levado ao fogão de lenha, cozido em panelas de barro.

No jardim da avó, que também tinha canteiros de pomar, cultivava-se romãs, flores Onze Horas, Hortências, Beneditas, Cravos, Rosas, Dálias, pimentões e tomates,  santuário da casa que ai de quem o violasse!

O abate das galinhas de capoeira era feito em alguidar de barro, e a algazarra da criançada nessa hora era grande. Os meninos mais traquinos melavam a pena da ave no sangue e as futuras mocinhas corriam com nojo, evitando serem sujas.

Os banhos nas cacimbas, cavadas nas prainhas dos rios, onde se recolhia a água para o cozimento da comida e a limpeza dos utensílios domésticos, era diversão certa para a garotada. No caminho sobrevoavam o céu araras e jandaias que grasnavam alegres, sinalizando o bom dia, abrindo-o durante a madrugada que recebia o sol.

A água gelada que brotava nos poços rasgados pelas mãos jovens e unidas cortava a pele e enrijecia os músculos trêmulos de frio dos mais sonolentos, acordando-os por fim, que despertos eram tomados pela festa da celebração de um novo dia, mesmo que para muitos o dia fosse igual a todos os outros.

Sobre comemorações, as festas juninas duravam dias! Vinham de longe sanfoneiros pés-de-serra, cozinheiras de outras cidades. Matava-se alguns bodes para comer o sarapatel, o assado e a buchada. E à noite dançava-se as quadrilhas bebericando pinga.

Para quem morava na fazenda, ir à cidade grande demandava tomar a sopa, como chamava-se o coletivo. Quando o pai da menina voltava de lá trazia caixinhas de uva-passa e maçãs com que presenteava os filhos, mimos paternos. E nos passeios à casa do avô tomavam o pau-de-arara, degustando pinhas no caminho, em cima da carroceria onde bancos e até cama acomodavam os passageiros.

Tudo era doce nessa infância da menina. Até mesmo o umbu, com que a avó preparava a umbuzada. O melão. A melancia. A goiaba. O juá, que usava  para escovar os dentes e lavar os cabelos. Doces eram suas brincadeiras, as histórias que ouvia, as reuniões familiares. Doces misturados a sensações outras não menos sentidas, todas retidas na audição, no tato, no olfato, na visão, no paladar, e no afago da alma, este que a capacidade humana não consegue explicar.

Agora, sentada na espreguiçadeira da varanda de seu apartamento, a menina olha a paisagem daquele 5º andar. Está cercada por prédios altos, cravados numa cidade carente de árvores e pássaros. Acompanha sorridente as páginas do álbum de sua vida passarem ligeiramente diante de seus olhos, movidas pelas mãos meladas de doce de sua neta, recordando feliz do doce sabor de sua infância querida, degustada no tempo e jamais esquecida.

 
***

*O conto acima foi inspirado nas memórias de infância de minha mãe. Costurei o texto e enviei para concurso literário. Pouco tempo depois, com muita alegria, soube que havia sido selecionado no
9º CONCURSO DE CONTOS LUÍS JARDIM DA BIBLIOTECA POPULAR DE CASA AMARELA,  porém nunca premiado, sem justificativa alguma da Prefeitura do Recife, promotora do evento.

Todos os autores que participaram do concurso naquela edição e tiveram os seus contos escolhidos JAMAIS receberam qualquer explicação da elaboradora do concurso e torno a fazer minha pública manifestação de descrença do aparelho da Prefeitura do Recife que deveria realizar a promoção da arte literária no município com clareza e de forma verdadeiramente democrática.
 
 
 
Amanhã minha mãe aniversaria e não poderia adiar a publicação do presente por mais tempo.
 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Contribuições