Dedicado à minha mãe, Maria Estela Maracajá *
Antigamente,
ainda na época em que vivia nos engenhos, onde o mel era feito em tachos
enormes, a menina entrava nos galpões procurando melado para adoçar o sabor de
sua infância.
A moenda da
cana, de tempos em tempos, tinha cheiro de bagaço moído, e a hora do corte dos
doces em barra na fábrica abrilhantava seus olhos infantis atrevidos, que se
enfiavam nos caixotes de cultivo de abelhas a procurar as rainhas, nunca sequer
tendo sido ferroados.
O doce em
barra oferecia aos vendedores ambulantes o produto para alegrar a ela e a
criançada, e um dos ambulantes, seu Cícero, percorria a cidade num burrico,
anunciando a guloseima aos seus apreciadores com o animal a azurrar alto, como
que ajudando o seu dono a oferecer o artigo.
O Homem do
Urso surpreendia, trazendo pela coleira o mamífero de outras terras, colocando
seu bicho de estimação diante da menina,
a comer torrões de açúcar bruto, o que tirava o personagem dos contos de fadas
que ela conhecia.
Nessa
infância nordeste, interiorana, na fazenda de seu avô, na infância de botijas
enterradas na praia dos rios, próximo ao serrote, nos tanques, a menina sabia
que habitavam negros armados só vistos por pessoas mais atentas. A criançada procurava as moedas carimbadas e
douradas no sonho da sorte grande, mas o máximo que encontrava eram jaguatiricas
trepadas nas árvores, silenciosas, a esperar a passagem do burburinho de longe.
No
crepúsculo da fazenda, ali distantes, sem a presença da luz elétrica, a menina
e a família ouviam o ciciar das cigarras e o balido das cabras com seus
chocalhos no pescoço. Os candeeiros iluminavam o interior da casa que cheirava
querosene queimado, e a janta era preparada para todos sentarem-se à mesa.
Antes de dormir, a menina, os irmãos e os primos, ainda se acomodavam no
calçadão da lateral da casa onde as janelas já haviam sido fechadas para os
insetos não buscarem a luz e infestarem os quartos, unidos pela ausência de
teto.
O banheiro
fora da casa era o mote para causos de assombração, causa da cama urinada pelas
crianças e dos pinicos cheios durante a manhã dos dias posteriores às noites de
contação. E antes dos almoços, debulhando o feijão, novamente as crianças
assentavam-se no calçadão para ouvir Histórias de Trancoso, de Tejus que se
transformavam em príncipes encantados.
Nos dias em
que a menina e os pequenos dormiam no sótão, deitados em redes, sentiam-se mais
seguros dali de cima, longe do oratório que os assustavam, com seus santos de
madeira de olhos vivos. Os lençóis, guardados em baús imensos de madeira nobre,
cheiravam a sândalo e perfumavam seus sonhos inocentes e tranqüilos.
Nestes
tempos ninguém despertava tarde e dormia-se muito cedo. Meninos e meninas
acordavam com o cocoricar do galo e corriam para o curral com copos de ágata e
de alumínio para tomar o leite quente tirado na hora. Nessa rotina matinal a
menina ajudava a produzir o queijo, colocando em tachos de madeira o leite já
coalhado. Tirava o soro que dava para os porcos e fazia a manteiga de garrafa.
O café era torrado e depois pisado no pilão. E o cuscuz era feito do milho
ralado na hora. Tudo era levado ao fogão de lenha, cozido em panelas de barro.
No jardim
da avó, que também tinha canteiros de pomar, cultivava-se romãs, flores Onze
Horas, Hortências, Beneditas, Cravos, Rosas, Dálias, pimentões e tomates, santuário da casa que ai de quem o violasse!
O abate das
galinhas de capoeira era feito em alguidar de barro, e a algazarra da criançada
nessa hora era grande. Os meninos mais traquinos melavam a pena da ave no
sangue e as futuras mocinhas corriam com nojo, evitando serem sujas.
Os banhos
nas cacimbas, cavadas nas prainhas dos rios, onde se recolhia a água para o
cozimento da comida e a limpeza dos utensílios domésticos, era diversão certa
para a garotada. No caminho sobrevoavam o céu araras e jandaias que grasnavam
alegres, sinalizando o bom dia, abrindo-o durante a madrugada que recebia o
sol.
A água
gelada que brotava nos poços rasgados pelas mãos jovens e unidas cortava a pele
e enrijecia os músculos trêmulos de frio dos mais sonolentos, acordando-os por
fim, que despertos eram tomados pela festa da celebração de um novo dia, mesmo
que para muitos o dia fosse igual a todos os outros.
Sobre
comemorações, as festas juninas duravam dias! Vinham de longe sanfoneiros
pés-de-serra, cozinheiras de outras cidades. Matava-se alguns bodes para comer o
sarapatel, o assado e a buchada. E à noite dançava-se as quadrilhas bebericando
pinga.
Para quem
morava na fazenda, ir à cidade grande demandava tomar a sopa, como chamava-se o
coletivo. Quando o pai da menina voltava de lá trazia caixinhas de uva-passa e
maçãs com que presenteava os filhos, mimos paternos. E nos passeios à casa do
avô tomavam o pau-de-arara, degustando pinhas no caminho, em cima da carroceria
onde bancos e até cama acomodavam os passageiros.
Tudo era
doce nessa infância da menina. Até mesmo o umbu, com que a avó preparava a
umbuzada. O melão. A melancia. A goiaba. O juá, que usava para escovar os dentes e lavar os cabelos.
Doces eram suas brincadeiras, as histórias que ouvia, as reuniões familiares.
Doces misturados a sensações outras não menos sentidas, todas retidas na
audição, no tato, no olfato, na visão, no paladar, e no afago da alma, este que
a capacidade humana não consegue explicar.
Agora, sentada
na espreguiçadeira da varanda de seu apartamento, a menina olha a paisagem
daquele 5º andar. Está cercada por prédios altos, cravados numa cidade carente
de árvores e pássaros. Acompanha sorridente as páginas do álbum de sua vida
passarem ligeiramente diante de seus olhos, movidas pelas mãos meladas de doce de
sua neta, recordando feliz do doce sabor de sua infância querida, degustada no
tempo e jamais esquecida.
*O conto acima foi inspirado nas memórias de infância de minha mãe. Costurei o texto e enviei para concurso literário. Pouco tempo depois, com muita alegria, soube que havia sido selecionado no
9º CONCURSO DE CONTOS LUÍS JARDIM DA BIBLIOTECA POPULAR DE CASA AMARELA, porém nunca premiado, sem justificativa alguma da Prefeitura do Recife, promotora do evento.
Todos os autores que participaram do concurso naquela edição e tiveram os seus contos escolhidos JAMAIS receberam qualquer explicação da elaboradora do concurso e torno a fazer minha pública manifestação de descrença do aparelho da Prefeitura do Recife que deveria realizar a promoção da arte literária no município com clareza e de forma verdadeiramente democrática.
Amanhã minha mãe aniversaria e não poderia adiar a publicação do presente por mais tempo.
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