quarta-feira, março 05, 2014

PEQUENA


MARIA WILLIANE


Um dia a pequena se foi, tão sorrateiramente quanto chegou. E mais. Levou consigo os relógios coloridos, o Pernalonga, as canetinhas de desenho, as medalhas de ouro e prata - por que "se era pra ganhar bronze, era melhor não ganhar nada." Levou também todo o oxigênio que um dia lhe faltou, levou os tênis de velcro com estampas de cachorrinhos, levou a cortina velha, rasgada e querida dos Ursinhos Carinhosos, e também a casinha pequena com os móveis de pinho e o sofá verde brilhoso - que apesar disso, nunca foi mais confortável que o preto, simples, de botões, da sala de TV. Levou a sala de TV. A pequena levou dias maravilhosos, os passeios no parque - sempre aos domingos! Levou os feijõezinhos da escola plantados em chumaços de algodão - que nunca vingavam muito, mas que floresciam só pra gente ver. Levou a maria-mole e os fantoches vivos do jardim de infância, o medo dos palhaços anões, o medo dos corredores escuros, os almoços na casa da vó - e por isso levou também a família quase toda! Levou os desenhos animados da hora do almoço, levou o livro favorito - e seu título também. A pequena levou com ela um futuro brilhante! Levou o orgulho ofertado e a felicidade que se tem de uma vida inteira, levou o pecado de outro sem saber que existia, mas deve tê-lo jogado na primeira lata de lixo que achou no caminho, assim que se deu conta. Levou os brigadeiros gigantes e a hora do recreio, levou a coleção de bolinhas pula-pula, o porta-lápis rosa e grená, levou os chazinhos de mato verde e os óculos de aviador do pai, levou os cuidados excessivos mas carinhosos da mãe, levou a queda da rede que nem deixou cicatriz, mas que seria uma grande história na escola! Levou a blusa azul de Amélia, levou a sua Amélia, levou as feiras de ciências, a massinha de modelar e os dinossauros, levou o ônibus espacial de brinquedo, levou a bicicleta amarela da chaminé que só no final abandonou as rodinhas, levou a alegria dos pais e a surpresa do dia que a irmãzinha nasceu, levou a família mais perfeita que o mundo já viu, levou a chance de outras pessoas conhecê-la, levou Bia - que morava com os pais num Circo e fazia piqueniques em bosques e que a pequena também levou. Levou o channel em fios de ouro que a fez chorar nos primeiros dias, levou a ideia ingênua de que todo mundo era bom, menos uma pessoa. Levou a força, o entusiasmo, o talento e o sucesso que existiam no mundo naquele tempo. Levou os meninos: amiguinhos de escola que dividiam lanches e brinquedos com ela. Que brincavam de Tazo. Levou a bolsa dos dálmatas, e os coelhinhos - todos eles!, também os pintinhos coloridos que já teve - exceto o que morreu estrangulado por muito amor. Levou a convivência com os vizinhos. Levou a centopeia verde e os pianos - os dois!
A pequena levou.

E o tempo levou a pequena, e já levou tanto que hoje só me escorrem duas lágrimas, tão alvas quanto a pureza que nasceu com seus olhinhos, quanto a saudade que sinto de ver suas mãozinhas pequenas fazendo arte depois da tarefa. Fazendo história e lembrança.
***

                                                       
PARA 

              e olha pra mim.

                                              M.W.
 
 
Maria Williane( M.W.), funcionária pública, estudante de Letras UFRPE - UAG. Compositora, cantora nas horas de lazer e para amigos seletos. Escritora, desenhista. É uma mulher livre!


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