quarta-feira, setembro 01, 2010

O COLECIONADOR DE CARTAS



Mal a moça havia conhecido o rapaz e se enamorara dele. Bastou que ele lhe dedicasse um pouco de atenção e fora se entregando, abrindo sua vida, seus planos.
Ela gostava de escrever, ele a inspirava, trazia-lhe novas imagens, apagava antigas, amareladas, de amores mal elaborados, findos. Sua companhia lhe distraia, divertia, apaziguava dores de amor que agora se esvaiam no tempo, nos caminhos das trilhas que os dois percorriam, nas narrativas das histórias que ele compunha e ela visualizava mentalmente. Não havia mais a imagem, a história e a presença do desamor. O rapaz lhe preenchia o vazio, lhe ocupava a mente, tornava-se cotidiano. Ela abria suas porteiras, escancarava-se, e ele adentrava sua vida com sua licença.
Assim, a moça passou a amá-lo, seu modo, sua graça. Suas músicas, suas paixões, seus caminhos, seus livros, sua chatice. Arrogância e ironia. O outro, agora não representava mais nada diante daquele estrategista, que se aproximara no momento frágil da presa, no momento exato da caça.
E a moça, já sentindo novo sinal de perigo, de que a areia se tornava movediça, que a vida lhe saia do controle, escreveu seu primeiro conto. E posteriormente poemas. Em seguida cartas. Descreviam os momentos iniciais da trajetória daquele envolvimento. Ele sempre acumulando palavras, frases, desejos entre linhas. Ela sempre registrando em papel seus sentimentos, o que ele lhe provocava intencionalmente. Não sabia ela que ele colecionava comportamentos, respostas dos estímulos de suas presas.
Ele alimentava a caça e depois cessava seu alimento, mantinha-a com sede, com fome de toque, de cheiro, de palavras. E a caça, já se habituando à solidão, era novamente cuidada pelo seu dono, que revisitava seu bicho de estimação, porém uma estimação pouco cativa.
Nela ele via seu poder de domínio, manipulação, e reabastecia-se de forças por saber que podia, apenas com uma simples passagem, manter o vínculo sem esforço para isso.
O número de cartas aumentava. A moça extraía da alma todo o sentimento, e o intento do caçador era cumprido. Uma a uma as cartas mexiam com seus brios, tornava-o grande. E sua satisfação não se satisfazia. Não importava o quanto a moça sofresse, ele esgotaria seus sentimentos, até que ela não mais suportasse representar em palavras toda a sua dor. Aquela seria a primeira etapa do plano vil do caçador. Depois experimentaria as manifestações explícitas da moça, externadas em choro, queixumes verbais.
Mas por sorte a moça acordara. Rebelando-se em palavras, desvencilhou-se, por fim, do caçador... E não cativa deixou de escrever mais textos, mais poemas tristes.
O colecionador de cartas preserva seu hábito diário de alimentar presas. Costuma manter uma gaveta cheia delas, enclausuradas em textos proseados, versificados, mas todos tristes... Não percebeu ainda que ele mesmo se aprisionou naquelas cartas, nas matas, na gaveta. Não sabe que já tornara-se presa.

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2005 iniciado - 2010 finalizado

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