sexta-feira, março 26, 2010

INFÂNCIA: ARTIGO DE LUXO


Hoje havia acordado com o espírito leve, animada para fazer contação de histórias aos meus alunos. Com o livro de contos maravilhosos na bolsa, dirigi-me à escola. Durante o percurso, um episódio me tirou de meu estado inspirador. Presenciei uma mãe, que levava seu filho menor, de mais ou menos 5 anos de idade, à escola, o torturando psicologicamente, com xingamentos e ameaças, por ele, simplesmente, distraidamente, ter pego uma flor no meio - fio e não ter dado atenção à bicicleta que vinha em sua direção. Mandou que o filho jogasse a “porcaria” da flor no chão, e continuou com seu discurso medonho.
Mais adiante eu seguia, pedindo silenciosamente a alguma força superior que impedisse aquela mulher de agredir ao filho. Mas, infelizmente, meus pedidos não foram atendidos. Ouvi o primeiro golpe e me virei. Sucessivamente ela desferiu mais duas guardachuvadas pesadas na cabeça do menino. Estava feito. Me armei com toda minha revolta e comecei a discutir com aquela criatura dantesca ali mesmo, avisando-lhe de que se batesse novamente na criança eu lhe daria uma surra. Ainda informei que iria denunciá-la ao Conselho Tutelar, e disse umas boas verdades para ela, sabendo ser inútil, pois a ignorância não entende o que é certo ou errado. Ela me respondeu com deboche: “O filho é meu, eu pari, eu faço com ele o que eu quiser. Vá cuidar dos seus. Me deixe em paz.” Retruquei: “Por isso que filhos se voltam contra os pais, pelo tratamento recebido. Por isso tanta violência. O problema é meu também. E se bater nele vai apanhar de mim!”
A cena não durou mais de 10 minutos, ela continuou sua caminhada e eu segui para meu trabalho. Ouvia de longe ela gritando com o menino: “A culpa disso é sua!”. Então, prevendo que a manhã daquela criança poderia terminar bem pior, liguei para o 190, relatei a situação à soldado e solicitei uma viatura, para que formalizassem a queixa na presença da mãe do garoto. Comuniquei à direção de minha escola o que ocorrera e aguardei a viatura na escola do menino. A mãe, ao voltar para casa, tendo o filho na escola, passou por mim e disse o nome dele e de sua professora, e saiu tranquilamente, certa de que aquilo não daria em nada.
Enquanto aguardava a viatura chegar à escola, conversei com a professora do pequeno, e com ele também. A cabeça do menininho doía, e perguntado se apanhava daquela forma em casa me respondeu com um aceno de cabeça em afirmativo.
Esperei por mais de 1h a chegada da viatura. Tinha de voltar ao trabalho. Coincidentemente, em minha escola hoje, um PM da Patrulha Escolar nos “visitou”. Pedi que me orientasse na questão. O policial disse que não poderia haver flagrante pelo ocorrido porque, nesse caso, considera-se ato infracional. Ou seja, flagrante seria se ela tivesse praticado um homicídio. Tentei ligar para o Conselho Tutelar, mas só consegui atendimento após 3h do acontecido. Denunciei o caso à conselheira responsável por aquela localidade e voltei para casa.
Não vou dormir tranquila hoje, pois sei que até essa mãe ser notificada aquela criança será espancada. Talvez nem tão cedo eu durma, pensando na infância de luxo que tive e que deveria ser direito de todas as outras crianças, não só de meu tempo de criança, mas ao logo desse tempo de paz e segurança anunciado há 20 anos com a instituição do Estatuto da Criança e da Adolescência.
Muitas coisas estão fora da ordem. A justiça sempre espera a fatalidade, nunca pune o que está no erro, prevenindo o pior. Falo isso de um modo geral. A mulher precisa ser espancada, porque a ameaça do marido-namorado-companheiro-agressor não basta como agressão em si; os professores precisam ser surrados, para que a justiça aplique medidas paliativas e ineficazes oferecendo aos jovens infratores o aperfeiçoamento de suas maldades; e as crianças precisam morrer ou tornarem-se adultos doentes, inteiramente violentados em seu físico e psicológico, para que em alguns momentos a sociedade lhes dê alguma atenção, quando a mídia se aproveita disso para vender jornais e aumentar a audiência da televisão.
A sociedade continua ilhada em casa, nas escolas e em sua vida confortável, até que a violência a atinja, assim como hoje fui agredida ao presenciar essa cena deprimente. Outras pessoas podem não se incomodar com o que aconteceu. Vão dizer que a mãe do menino realmente tem o direito de educar o filho como bem queira. Seguirão suas vidas dentro de seus carros, seus condomínios fechados, seus clubes, suas igrejas, dentro de seu mundo aparentemente seguro. Seus filhos permanecerão brincando com seus vídeos-game, seus jogos virtuais, ou em seus playgrounds. A violência permanecerá banalizada pelos desenhos animados, pelos filmes da sessão da tarde da TV, e tudo continuará impassível.
Quem muda são apenas as crianças lá fora. Elas serão mais infelizes, mais violentas, mais revoltadas, e seu futuro continuará alicerçado na indiferença, no cimento consistente da violência. Elas sim viverão livres, prontas a detonar a bomba armada no peito a qualquer momento, extravasando as dores instauradas em suas vidas, desde a sua infância.
Eu quero mudanças. Eu exijo. Eu brigo. Eu luto. Eu construo. Mas, admito que sozinha meu berro se esvai. Estou à margem tanto quanto essas crianças. Eu não faço parte desse mundo confortável. Estou ilhada na outra margem, acenando SOS para os amigos, os colegas de profissão, os colegas poetas, acadêmicos, tantos e tantos mais, e insone viro mais uma noite, parda na madrugada, olhando os telhados dos lares em silêncio assustador, que apagam as luzes e dormem em paz.

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