sábado, março 13, 2010

IDEIA FIXA


Começou pelos buracos feitos pelas formigas. Depois pelos buracos criados pelos cupins. Por fim, pelos do próprio corpo. Gostava de mexer em todos os seus buraquinhos. Conhecia todos os seus buracos. Sabia-os tão bem que ninguém os utilizava da maneira como ela o fazia. Na infância, introduzira no ouvido uma conta de miçanga de uma pulseira colorida partida. Na pré-adolescência, aspirou um caroço de pitomba pelo nariz, que germinou raízes em sua cavidade úmida. Na adolescência, perdeu algumas coisas dentro dela, até que, mulher já feita, as encontrou...

Minha filha desde pequena era uma mulher decidida. Sabia que na vida adulta seria autoridade. Teria uma boa posição na sociedade. Estudava para isso. Passou a infância e a adolescência com a ideia fixa de desvendar mistérios. Estímulo instigado na escola, pelo professor de ciências.

Na vida adulta se descobriu uma exímia investigadora. Apreciava achar coisas perdidas, desmantelar o crime organizado, tudo isso ela fazia muito bem. Mas a ideia fixa dos buracos continuava martelando em sua mente. Assim, passou a mexer nos buracos alheios. Adorava que lhe pedissem: “mexe mais”, o que a levava a crer que sabia o que fazia, e fazia-o com perfeição nos buracos dos outros. Tantos quanto pudesse adentrar motivavam-na a querer sempre mais, numa procura insana pela resolução do mistério. Até que um dia, passando a pé pela rua, resolveu mexer em buracos estranhos, e assim o fez, sem qualquer pudor e respeito. Fez pelo ato, pela curiosidade de saber o que ali existia.

Os donos dos buracos bolinados saíram e reclamaram a violação. A imprensa noticiou. A notícia logo se espalhou pela cidade. Minha filha ficou famosa. Usava luvas, justificava-se, único critério coerente, defendido por ela. O ato tinha aceitação da sociedade masculina local. Aplaudiram-na! Ovacionaram-na! Mas os buracos tinham sido devassados, em praça pública! Não havia restauração para aquilo...

Os dias passaram-se. A ordem tomou conta da cidade. E todas as outras mulheres voltaram às suas lidas diárias, aparentemente inalteradas. Graças a Deus, minha filha foi esquecida. Mas ela continua metendo-se nos buracos.

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